Tuesday, April 17, 2007

sal., UM MITO PROVINCIANO



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A sua arte é um combate, a sua arma a transdisciplinaridade. Agitando a bandeira da escatologia – entre o divino e o detrito –, sal. aterroriza curadores e galeristas, eleva a província a berço da subversão e alimenta-se de um pão que é amassado muito para além do bem e do mal.

Joana Maria: sal. é o nome pelo qual te dás a conhecer. É algum epíteto de pureza na cena artística nacional?

sal.: O nome nasceu acidentalmente. Numa noite, ao assinar um texto, um gatafunho com o qual assinei assemelhava-se a "sal.". Desde aí assim ficou. Ao assinar assim os trabalhos, foi a forma como me começaram a chamar também.

JM: Deve deduzir-se daí que te interessa mais a forma do que o conceito? Ou a forma é o próprio conceito da tua arte?

sal.: Ainda que dependa bastante dos trabalhos, a forma normalmente é delegada para segundo plano. Tenho um não-método punk que me faz pôr a urgência dos conteúdos muitas das vezes à frente da maneira como são apresentados. E se sempre me interessa o conceito, o contrário nem sempre é certo.

JM: Fotografia, videoart, cinema, poesia, teatro, música: os teus projectos abarcam diversas áreas. Esta multidisciplinaridade relaciona-se com diletância, com liberdade, ou com urgência?

sal.: Penso que com todas. A ideia de transdiciplinariedade ou multidisciplinariedade permite-me que possa escolher a maneira mais "certa" para focar o que quero sem que me prenda a uma delas. Nesse caso, sim é libertário, é uma escolha. É uma forma de não me cansar das coisas, aliado a que certas ideias se expressam melhor em texto e outras são mais interessantes de ser ditas em cinema ou por sons.

JM: A tua estética transpira intimidade. É a nudez e a transfiguração da tua imagem noutros corpos o caminho para a atingir? Pretendes atingi-la?

sal.: Neste momento até estou com um projecto que é exactamente vários corpos se tornarem no meu, numa caricatura feita apenas por umas barbas postiças. Desde sempre trabalhei o corpo, porque na realidade é o único que temos. Dessa forma, centrei o meu trabalho fotográfico e de cinema num antropomorfismo, de forma a ele também poder ter corpo. Por outro lado, acredito que só despindo-nos de certas coisas podemos falar de outras. O que quero é em primeiro que o meu trabalho seja livre. E, em segundo plano, que eu o seja.

JM: Por outro lado, a música que crias, denotadamente noise, é suficientemente caótica para se poder desvendar um sal. que apela à desconstrução. A unidade que consegues na fotografia e o niilismo dos eps que tens editado pela Test Tube e MiMi Records, e agora no teu novo projecto Monstars, é uma dualidade propositada?

sal.: Eu não sei se diria caótica. E muito menos niilista. Não consigo dissociar o método ou a ausência deste, detesto o conceito de método, que uso na música e no resto. Penso que a música sofre de estigmas os quais à força têm de ser eliminados. O facto de eu fazer noise ou o que lhe queiram chamar incomodar algumas pessoas não deixa de fazer com que maior parte da música me incomode a mim. Em Finlandês noise e som é uma e a mesma coisa: ääni. E não considero que faça música, muito menos que seja um músico. Construo sons e algumas articulações entre eles.

JM: E o que é te incomoda?

sal.: O que me incomoda, e não só na música, é a mania de quererem tudo polindinho, tudo certo, tudo previsível; as pessoas estarem fechadas ao imprevisto e terem já à partida noções do que é bom/mau; a própria dualidade que as pessoas fazem entre o bom e mau. Se calhar muitas das coisas estão bem fora deste parâmetro.

JM: É fora dessas pré concepções que tu preferes ficar?

sal.: É, porque me permite ter uma relação nova e salutar com as coisas. Logicamente que, por estímulos sociais, estar fora disso implica uma luta. É uma das que travo.

JM: Escolheste Coimbra para viver. Foi um acaso ou está subjacente a essa escolha uma luta pela validação da cultura na província?

sal.: Eu acabo sempre por estar em vários sítios. E tenho estar o mais fora possível das cidades de Lisboa e Porto, porque há muita concentração de coisas e desrespeito pelas pessoas. Neste último mês estive em Coimbra, Leiria, Viseu, Montemor-o-Velho e Vila Nova de Milfontes. As colaborações que faço permitem-me estar em mobilidade, o que me faz com que não esteja muito tempo no mesmo sítio. Prefiro assim.

JM: Como é que percepcionas a recepção das tuas obras pelo público em Lisboa e no Porto? Trabalhas com a nudez e com o ego, isso decerto será polémico.

sal.: A mim continua a preocupar-me o facto de um pénis chocar, e a corrupção, a falta de valores, coisas como a história de Natascha Kampusch ou Guantanamo Bay não chocarem. Portanto, se me cheira a hipocrisia, tenho o problema em parte resolvido. O que é certo é que não o faço por necessidade de choque. Faço-o por uma escolha. E não penso que os corpos choquem tanto assim, já. Os meus trabalhos mais choque serão as colaborações com o Pedro Bastos, em teatro, porque são trabalhos mais viscerais e mais de confronto, mais directos.

JM: A recusa institucional do teu trabalho e o início de um culto underground em torno da tua pessoa parecem-te sinónimos de subversão?

sal.: Espero bem que sim. Não sinto que muito do meu trabalho pactue com poderes instituídos. Vejo o meu trabalho como o de um padeiro, onde com poucos elementos tento fazer algo que possa chegar ao máximo de pessoas e que lhes possa saber bem. Aliás, neste momento, e desde que trabalhei com a Mimi Oka e Doug Fitch [www.orph.us] que estou a terminar uns ensaios chamados Bread Time Stories sobre a figura do pão.

JM: O teu próximo filme envolverá pão e política. É um delírio daliniano ou existe uma consciência social como motor?

sal.: O pão, para mim, é o símbolo máximo de arte. Também pode significar um murro ("levar um pão”), que é o que muitos artistas sabem o que é e pode significar à pressão ("à papo-seco"), de forma que pode ter inclusive várias leituras. A mim, interessa-me, mais que dar respostas, fazer perguntas. Se a pergunta agita e a resposta acalma, então prefiro fazer e que me façam perguntas.


08.2006



http://www.poisbem.com/

Tuesday, December 26, 2006


O meu amigo Rodrigo pediu-me para inventar um top 5 de 2006. E esse top poderia ser acerca de qualquer coisa. E eu fiz. Este. Porque escrever sobre um tecido é tão importante como escrever acerca do PIB (os barrocos provam-no). E, sim, este post é um copy-paste do que se pode encontrar no //ladieslovecoolr.blogspot.com.

Cinco razões para usar uma peça de flanela axadrezada em 2006



5. Mary-Kate Olsen Em 2006 a gémea da Ashley, que já é maior já desistiu da faculdade e já imitou o penteado do Nosso Senhor Jesus Cristo, fez-se passar por uma Chlöe Sevigny mais fofinha e lembrou ao mundo que foi o Marc Jacobs que deu o grunge ao mundo. No meio de passeatas por Nova Iorque com uma infindável colecção de copos do Starbucks, MK provou que a única coisa necessária para se rockar o look sem-abrigo e relembrar que o Gus Van Sant fez um dos melhores filmes de 2005 é vestir uma camisa de flanela axadrezada com botas compensadas. Nunca foi avistada de I-Pod mas eu quero acreditar que tudo se deve ao Rather Ripped dos Sonic Youth que ela ouve numa Bang & Olufsen ao chegar à sua casinha de lenhadora forrada a madeira e perfeita para uma festa Cobra Snake.

4. Raymond Raposa O senhor cantautor que dá pelo nome de Castanets veio à ZDB. Deu um concerto e até era noite de Carnaval. Fazia frio. Na rua havia serpentinas e confetti e gritos e máscaras pouco imaginativas e máscaras cómicas e máscaras completamente saídas do Party Monster. Dentro do Aquário da Galeria Zé dos Bois, os disfarces não vinham sob a forma de fatos de aluguer. E o Ray Raposa tinha um boné à camionista americano (não sei porque os europeus nunca usam chapéu) de xadrez. Estou em crer que era de flanela, mas não lhe toquei. Bastou ouvir "It’s alright / To want more than this" para as mãos aquecerem.

3. Cansei de Ser Sexy Os brasileiros (sim, há um mocinho com bigode lá pelo meio) mais fixes desde o elenco de Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa apareceram em 2005. Mas foi no corrente ano que espalharam todo o esplendor da sua parvoíce pelo mundo abençoado pelo YouTube. Alala alala e sai um videoclip em que as miúdas lutam e sangram dentro de prisões de lamé em jeito de vestidos. Isto não parece muito confortável, mas é giro. E talvez demasiado anos oitenta. E talvez do facto de o vídeo contar uma briga em rewind - do fim para um início em que não jorrava sangue - brote a ideia de que a flanela conforta mais do que penteados do WIP.

2./1. Karen O + Liars Há coisas que não se separam. O CD-R violeta onde a Karen O gravou dezasseis músicas acompanhadas de um poema do Oscar Wilde (límpido como todos os poemas do Oscar Wilde) para o seu Angus Andrew e que foi roubado por um fã da casa de um dos TV on the Radio não se pode separar da "The Other Side of Mt. Heart Attack" que os Liars souberam guardar para o fim do Drum's Not Dead. Porque o amor é como uma flanela boa - sobrevive a festas de kuduro progressivo em Lisboa e a ataques cardíacos em cima de um skate berlinense.

Sunday, July 30, 2006

O pirata, o eyeliner, e o romance bizantino.

Se o filme desilude, o eyeliner com que o Johnny Depp se desenha no Piratas das Caraíbas dá azo a movimentação de hormonas e a leituras. Mais sedutor do que seguir linhas pejadas de escorbuto e barbas coloridas pelo rum de Stevenson parece recuar vinte séculos e enveredar, no meio de enredos românticos básicos/babosos para o pós-moderno, pela primeira representação literária do pirata – o romance bizantino. Porque tem: sangue no leite (logo, cor-de-rosa), vilania, perda de virgindade, e melodias que afundam navios.
Montesquieu dizia que todos os primeiros gregos eram piratas. Talvez exagere, apesar de
A Ilíada estar repleta de referências a eles e Homero falar respeitosamente da pirataria como uma arte e como uma profissão requintada. Acabrunhar pela emboscada (uma crueldade extrema exigida pelos costumes da época): a técnica para o saque e vitória dos piratas. Curiosamente a evocação que Agamémnon no Canto V faz da sorte dos vencidos induz ao ultra-romantismo de que, por mais asseadinhos que pareçamos, continuamos a descender da Hélade, e, melhor, continuamos a descender de descendentes de piratas:
Os abutres resfastelar-se-ão com a carne indefesa e levaremos nos nossos barcos as suas mulheres e os seus filhos, depois de conquistarmos a cidade”.
São cinco os primeiros rascunhos do Romance, com títulos difíceis (Quéreas e Calírroe, Dáfnis e Cloé, Leucipe e Clitofonte), e com títulos fáceis (As Efesíacas, As Etiópicas) . Meloso mix de todos os ingredientes que originaram tanto a escrita de Faulkner como a de guionistas de telenovela, o romance bizantino, cárcere da tradição épica e trágica, desenvolve a primordial noção literária de anarquia e de niilismo. E isso transparece em banquetes tornados campos de batalha, em comunidades de bandidos e de palmeiras fenícias quase fantasmas (pelo seu esforço para a marginalidade), e na sugestão de uma relação entre pirataria e controlo cultural.
Aqui a aventura pirata move-se na tentativa de adquirir corpos, mulheres nas quais a virtude está incrustada, símbolos de conflito cultural ao invés de símbolos financeiramente relevantes, e, por fim, a apropriação que conduz à hegemonia. Um facto como a criação do romance bizantino ter estado nas mãos de orgulhosos descendentes dos povos da periferia do mundo grego antigo insinua um anseio de afirmação da sua sobrevivência cultural.
Mais negro do que o mar de Le Bateau Ivre ou de que o eyeliner do Capitão Jack Sparrow (alongando-me em estética: o Johnny Depp deve ter andado a ler Rimbaud, o Keith Richards não o pode ter influenciado assim tanto) surgem os vectores do pirata bizantino que afinal é o pirata total – um desconsolo tão grande que o conduz ao mar (possível alegoria da eternidade), um pudor que o faz recusar pertencer à memória da Humanidade (raros são os seus escritos), e a noção trágica de que ser pirata é ser-para-morrer.