Sunday, July 30, 2006

O pirata, o eyeliner, e o romance bizantino.

Se o filme desilude, o eyeliner com que o Johnny Depp se desenha no Piratas das Caraíbas dá azo a movimentação de hormonas e a leituras. Mais sedutor do que seguir linhas pejadas de escorbuto e barbas coloridas pelo rum de Stevenson parece recuar vinte séculos e enveredar, no meio de enredos românticos básicos/babosos para o pós-moderno, pela primeira representação literária do pirata – o romance bizantino. Porque tem: sangue no leite (logo, cor-de-rosa), vilania, perda de virgindade, e melodias que afundam navios.
Montesquieu dizia que todos os primeiros gregos eram piratas. Talvez exagere, apesar de
A Ilíada estar repleta de referências a eles e Homero falar respeitosamente da pirataria como uma arte e como uma profissão requintada. Acabrunhar pela emboscada (uma crueldade extrema exigida pelos costumes da época): a técnica para o saque e vitória dos piratas. Curiosamente a evocação que Agamémnon no Canto V faz da sorte dos vencidos induz ao ultra-romantismo de que, por mais asseadinhos que pareçamos, continuamos a descender da Hélade, e, melhor, continuamos a descender de descendentes de piratas:
Os abutres resfastelar-se-ão com a carne indefesa e levaremos nos nossos barcos as suas mulheres e os seus filhos, depois de conquistarmos a cidade”.
São cinco os primeiros rascunhos do Romance, com títulos difíceis (Quéreas e Calírroe, Dáfnis e Cloé, Leucipe e Clitofonte), e com títulos fáceis (As Efesíacas, As Etiópicas) . Meloso mix de todos os ingredientes que originaram tanto a escrita de Faulkner como a de guionistas de telenovela, o romance bizantino, cárcere da tradição épica e trágica, desenvolve a primordial noção literária de anarquia e de niilismo. E isso transparece em banquetes tornados campos de batalha, em comunidades de bandidos e de palmeiras fenícias quase fantasmas (pelo seu esforço para a marginalidade), e na sugestão de uma relação entre pirataria e controlo cultural.
Aqui a aventura pirata move-se na tentativa de adquirir corpos, mulheres nas quais a virtude está incrustada, símbolos de conflito cultural ao invés de símbolos financeiramente relevantes, e, por fim, a apropriação que conduz à hegemonia. Um facto como a criação do romance bizantino ter estado nas mãos de orgulhosos descendentes dos povos da periferia do mundo grego antigo insinua um anseio de afirmação da sua sobrevivência cultural.
Mais negro do que o mar de Le Bateau Ivre ou de que o eyeliner do Capitão Jack Sparrow (alongando-me em estética: o Johnny Depp deve ter andado a ler Rimbaud, o Keith Richards não o pode ter influenciado assim tanto) surgem os vectores do pirata bizantino que afinal é o pirata total – um desconsolo tão grande que o conduz ao mar (possível alegoria da eternidade), um pudor que o faz recusar pertencer à memória da Humanidade (raros são os seus escritos), e a noção trágica de que ser pirata é ser-para-morrer.

2 Comments:

Blogger João M said...

belíssimo texto. bem-vinda ao blogspot!

6:53 PM  
Blogger Rodrigo Nogueira said...

Devias escrever mais, Joaninha.

3:20 PM  

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